• 4. Figurino

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    Chamamos de “figurino” as roupas e acessórios das personagens. As funções do figurino podem ser específicas no filme e existe um leque amplo de possibilidades para se trabalhar com essa área. O importante é que, assim como nas outras modalidades da direção de arte, o figurino esteja auxiliando a construir nossa narrativa.

    O curta-metragem “Nada” (2017) nos apresenta Bia, uma garota de 18 anos que está em período de ENEM. Entretanto, enquanto seus colegas de turma estão fervorosos com a prova e a possibilidade de uma graduação, Bia não quer fazer nada. O filme fala sobre as questões intimistas da personagem, questionando imposições e escolhas. Uma verdadeira jornada espiritual. E o figurino contribui para criar essa atmosfera através de um detalhe bem interessante: o gorro de Bia, além de ser na cor roxa (associada com espiritualidade e autoconhecimento), traz um olho bordado. A impressão é de que a personagem está com seu terceiro olho constantemente aberto, olhando para dentro de si mesma.


    No longa “A Noite Amarela” (2019) acompanhamos um grupo de adolescentes numa espécie de filme slasher, onde o assassino é o próprio tempo e a perspectiva de um “não futuro”. As metamorfoses da vida são sugeridas através do figurino de uma das protagonistas - que apresenta várias borboletas estampadas, um simbolismo para a mudança. Afinal, assim como a lagarta se torna um ser completamente diferente, a persistência do tempo nos molda.


    O tom que a direção de arte dará aos figurinos depende da atmosfera que se pretende construir. É importante ressaltar que a área de figurino não é totalmente independente, ou seja, precisa estar em harmonia com o restante da proposta visual. Assim, os figurinos podem ser mais simples ou mais estilizados, chamando atenção por suas características gráficas. Em “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho” (2014), por exemplo, acompanhamos o despertar da afetividade de Leonardo, um adolescente que está no Ensino Médio. Em boa parte do filme, vemos as personagens com uniformes do colégio - ou seja, temos algo mais simples, menos estilizado. Isso não quer dizer que o figurino não é pensado – ele auxilia a construir toda uma identidade visual para a obra. Observe como a cor dessas roupas faz sentido com o restante do universo do filme – uma crônica juvenil sobre o primeiro amor que explora tons pastel que trazem uma ideia de inocência, até mesmo de pureza.


    Já na série “3%” (2016) temos uma distopia que retrata uma sociedade meritocrática fortemente estigmatizada. Dado esse tom da narrativa, a direção de arte trabalha com figurinos mais estilizados. Na trama, o Continente e Maralto são dois opostos. A pobreza e as condições pouco favoráveis do Continente podem ser observadas nos figurinos das personagens – que parecem se vestir com todo tecido que conseguem, pensando muito mais em questões de proteção do que estética. Os materiais são visivelmente surrados. No Maralto, as personagens utilizam roupas que vestem bem e possuem aparência quase clínica – limpas, estéreis. Além disso, linhas e formas estampadas dão o tom futurista de uma sociedade super desenvolvida.


    Na telenovela “Cordel Encantado” a proposta era misturar contos de fadas com a realidade do sertão nordestino. Pela  trama, transitavam personagens da realeza de Seráfia e do sertão nordestino. Os figurinos da Rainha Helena pretendiam passar uma atmosfera soturna e futurista. Como inspiração, utilizaram-se obras da ficção científica, como “Star Trek”. A Duquesa Úrsula de Bragança era uma mulher ambiciosa e cheia de luxúria. Seus figurinos eram poderosos e imponentes. Os vestidos, cheios de pedrarias, super pesados. Além disso, a personagem usava vários acessórios – como adornos na cabeça. No núcleo nordestino, havia outro tipo de nobreza: as personagens eram simples, mas heróicas. Era o caso de Herculano, o Rei do Cangaço, e seu bando. Materiais como couro, metal, palha, fuxicos e retalhos de tecido podiam ser observados nos habitantes da fictícia Brogodó, uma pequena cidade do sertão.


    Os figurinos também podem ficar longe da nossa realidade (mas ainda assim serem realistas) ao retratarem outras épocas e períodos históricos. É o caso do longa “O Nó do Diabo” (2018) que percorre vários momentos da história brasileira para falar do terror da escravidão. Em “Carlota Joaquina” (1995) acompanhamos uma narrativa que data do final do século XVIII e início do século XIX. Para confecção dos figurinos, pesquisas em documentos e registros da época foram feitas – abrangendo materiais, acabamentos e, claro, os modismos. É importante perceber que, quando pensamos em narrativas de época, geralmente estamos lidando com figurinos que precisarão ser confeccionados ou, ao menos, customizados.


    As roupas e acessórios podem ser ferramentas muito eficazes para transpor a personalidade das personagens. Na telenovela “Bom Sucesso” o vilão Diogo apenas usava tons de preto – que construíam sobreposições, mesclando texturas diferentes. Alguns tecidos eram mais brilhantes que outros e também dialogavam com traços da personalidade do antagonista – ambição e prazer em se exibir, por exemplo. Na telenovela “Orgulho e Paixão”, livremente inspirada nos romances de Jane Austen, conhecemos as Irmãs Benedito. Cada uma era dona de uma personalidade bem marcante e, para ressaltar os principais traços, cores específicas eram associadas com cada irmã – e o figurino trabalhava justamente isso. Elizabeta usava vermelho (era apaixonada pela vida e tinha toda a valentia necessária para desbravar o mundo); Jane, azul claro (a irmã mais gentil, doce, tímida e, até certo ponto, frágil e pura); Lídia, rosa (ingênua, feminina); Cecília, verde (sua imaginação era a mais fértil de todas); e Mariana, laranja (corajosa, aventureira e cheia de energia).

    No diálogo entre cenografia e figurino podemos ter dois extremos: ou as personagens “se fundem” ao cenário ou se destacam dele. Em “Café com Canela” (2017), por exemplo, é possível perceber a opressão que o cenário (as paredes são de um verde sem energia, as cortinas são pesadas, os objetos lançam longas sombras e podemos perceber encardidos e infiltrações, como algo em ruínas), causa na personagem Margarida que vive em luto e melancolia após perder seu filho. Mas isso vai além: a personagem está tão absorta nesses sentimentos que parece ser parte daquele ambiente - e, aqui, seu figurino ajuda a passar a mensagem.

    "Café com Canela" (Glenda Nicácio / Ary Rosa, 2017) (Filme completo:

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    Com sua camisola apagada, amarrotada e encardida, a personagem transita pelo ambiente opressor de sua casa. Ela parece fundir-se ali, naquele cenário de tristeza. Em outra cena, a personagem Violeta, que através do afeto tenta resgatar Margarida daquele estado, se destaca no cenário opressor, sendo o oposto de Margarida: vestida de vermelho, ela parece saltar do quadro, como algo que não pertence ao espaço melancólico que vemos. 

                                                          

    "Café com Canela" (Glenda Nicácio / Ary Rosa, 2017) (Filme completo:

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    Como podemos pensar a questão dos figurinos em produções mais amadoras? Mais uma vez a criatividade e inventividade serão pontos importantes. Grandes produções costumam produzir seus figurinos do zero. Isso dificilmente ocorre quando pensamos num contexto mais independente: os figurinos podem ser empréstimos, locações (acessíveis) ou aquisições em brechós e/ou bazares de peças usadas. Se você está lidando com um figurino estilizado, algo longe da sua realidade (como um filme de fantasia ou de época), customizações podem, sim, serem feitas. O interessante é partir de uma peça já existente para facilitar o processo. Procure materiais baratos (retalhos, fuxicos, tecidos não tão nobres) e pessoas que possam auxiliar no projeto de maneira acessível (como a costureira do bairro ou algum familiar dos envolvidos no filme). O empréstimo de figurinos é uma prática muito comum nessas produções. Você pode mostrar referências de peças e acessórios que está buscando para sua equipe e fazer um levantamento do que o grupo pode emprestar. Conversar com as atrizes e atores do seu filme também é uma boa ideia - afinal, vindo deles, será mais provável que as peças sirvam, sem necessidade de ajustes. No caso de empréstimos a melhor dica é segurar esses figurinos do início ao fim do filme, para evitar problemas de produção e, especialmente, continuidade: imagine que sua atriz lhe emprestou um vestido; gravou algumas cenas e o levou para casa, garantindo que voltaria com a peça no outro dia; então ela resolve ir numa festa com aquele mesmo vestido e o mancha de bebida... A continuidade do seu filme estará bem comprometida.

    É preciso um bom sistema de organização para não se perder com os vários figurinos de um filme e não prejudicar a continuidade. Mesmo quando lidamos com poucos figurinos, é necessário ter em mente as mudanças ocorridas nessas roupas e acessórios durante as cenas. Por exemplo, digamos que sua personagem viveu uma fuga por uma floresta - nas cenas seguintes será necessário que o figurino esteja sujo e rasgado, certo? Pode parecer algo óbvio, mas isso fica um pouco mais complexo quando pensamos que um filme quase nunca tem suas cenas gravadas na ordem cronológica do roteiro. Ou seja, pode ser que, por conta da produção, a cena da fuga seja a primeira. E então, como ficará para gravar o resto do filme? Talvez seja o caso de ter mais de uma versão do mesmo figurino. Esse quebra-cabeça temporal precisa ser previsto. Outro exemplo, mais sutil: uma personagem está com um vestido impecável, mas, conforme a noite avança, a roupa vai se amarrotando - e isso tem que ficar evidente. Embora seja o mesmo figurino, será necessário saber detalhadamente e com antecipação (para evitar consultas frequentes ao roteiro, coisa que nunca funciona no ambiente de set) em quais cenas o vestido estará liso e perfeito e em quais estará com aspecto de usado.

    No sentido de evitar esses transtornos de continuidade, as produções possuem documentos que registram todos os figurinos do filme, com seus detalhes. São eles, a “análise técnica de figurino” e a “bíblia de figurino”. Esses documentos acompanham a equipe de direção de arte, estando facilmente acessíveis para consultas durante o set. Embora façam parte de um aspecto mais técnico do ofício, podem servir de inspiração para sua produção - você não precisa preencher exaustivamente documentos como esses, mas pode tê-los como modelos para listar todos os figurinos do seu filme e não se perder com eles. 



    Observe que esses documentos são planilhas que podem facilmente ser reproduzidas (e até adaptadas conforme suas necessidades). Na “análise técnica de figurino” você vai listar todos os figurinos que identificar no seu filme, a partir da leitura de seu roteiro. Nas primeiras colunas será necessário situar em quais momentos do filme esses figurinos aparecem (sequência, cena, parte), além de detalhes dessas gravações (se elas são externas ou internas, dia ou noite, em qual cenário ou locação e até o dia cênico da sua narrativa). Em seguida você irá identificar qual personagem utiliza aquele figurino. Então, para cada figurino você irá atribuir um número. Esse detalhe é importante, pois funciona como um código para cada figurino e evita mal entendidos ao longo da produção - é muito mais prático se referir ao “figurino 03” do que ao “vestido longo de cetim vermelho com manchas de gasolina”. Em seguida será necessário descrever esse figurino tal qual ele aparece no roteiro e, se preciso for, estender as minúcias em “observações”. A “bíblia de figurino” é um documento mais detalhado de cada figurino do filme. Nas primeiras linhas completamos detalhes técnicos. Será necessário identificar qual personagem irá usar aquele figurino, além do nome da atriz ou ator. Onde se lê “R” você irá completar com o código ou número que atribuiu ao figurino. E, em seguida, em “sequências”, irá apontar todos os momentos em que aquele figurino aparece no seu filme. Por fim, você terá um amplo espaço para detalhar (infinitamente) as roupas, adereços e, inclusive, a maquiagem daquele figurino. Não poupe palavras. É preciso descrever tudo com precisão, pois esse documento será seu guia ao longo da produção. Lembre-se que, no caso de uma roupa que aparece modificada em diferentes momentos, você terá que contar como figurinos diferentes (é o caso da fuga pela floresta: “figurino 01” será o conjunto de roupas em bom estado, maquiagem impecável; “figurino 02”, as roupas sujas e rasgadas, a maquiagem borrada). Embora não se espere tanto controle em produções mais amadoras, perceba que ter uma lista detalhada dos figurinos e em quais cenas e sequências eles aparecem será uma verdadeira mão na roda para não se perder ao longo do processo de filmagem.



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