• 3. Os cuidados da montagem

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    Apesar de ser uma das últimas etapas no processo de criação de um filme, os princípios de montagem estão presentes em toda linha de produção. Desde o roteiro, passando pela fotografia, iluminação e som, a preocupação com a montagem pensa e trata soluções para o desenvolvimento coerente da mensagem (mesmo quando o objetivo é algo que foge da narrativa clássica). A exemplo, a forma do filme. Desde o argumento, a maneira como a história pode ser contada é considerada. Em documentos como Roteiro, Storyboard e de continuidade, também são pensados os cortes, a melhor maneira de apresentá-los ou escondê-los e os cuidados que devem ser tomados durante a produção pois, uma vez produzido o material bruto,  as soluções para eventuais problemas são limitadas. Reisz tipifica esses cuidados que, inclusive,  vamos tratar como o passo-a-passo do processo de montagem.


    • Construção de uma continuidade lúcida: A primeira versão do filme é chamada de “Copião”. É uma versão montada na ordem e como o roteiro descreve, com os arquivos que os boletins indicam como satisfatórios, os principais efeitos sonoros e os momentos de silêncio. O copião acelera bastante o processo porque começamos a trabalhar minuciosamente a partir de um material que já tem um “corpo” e não a partir do zero. O objetivo é construir uma continuidade lógica, inteligível, que seja dramática e fisicamente fluente. Observando também “correspondências de tonalidade” entre os planos, desvios na qualidade e coerência: iluminação, exposição e condições do clima. Ou seja, colocamos as melhores partes do material em ordem, como o roteiro manda: “Então a personagem entra na sala, senta no sofá e liga a televisão”, nesse caso vamos colocar no programa a imagem da personagem entrando, depois indo até o sofá, sentando, pegando o controle e ligando a tv. Claro que os caminhos para se fazer isso são infinitos, mas de certa forma, as outras etapas da produção já pensaram como seria essa cena e inclusive a documentaram com o storyboard e com os boletins no dia da gravação. A preocupação aqui é já tirar dos arquivos as cenas que não deram certo, escolher as melhores candidatas até então, colocar os principais sons (no caso se no exemplo o que a tv está mostrando é uma informação importante ou no caso de pessoas falando em cena, mas que não aparecem no quadro). Montada essa base, retomamos desde o início observando alguns aspectos. 


    • Correspondência de ações consecutivas: Para que os cortes entre planos sejam fluídos, é preciso se atentar à física de como as coisas acontecem no universo da narrativa (considerando que por exemplo podemos estar sob os efeitos da falta de gravidade numa estação espacial ou até mesmo em uma realidade fictícia com suas próprias peculiaridades). O importante é que planos consecutivos sejam coesos tanto quanto ao movimento, quanto aos objetos do cenário. Se num plano a personagem, no ponto de ônibus, inicia o sinal para parada do coletivo com a mão direita, no plano seguinte aparece com a mão esquerda estendida ou se durante um diálogo a televisão aparece ligada enquanto uma personagem fala e desligada quando a outra responde, chamaremos a atenção para o corte, fato que normalmente se tenta evitar, como trabalhado na seção de Direção. Além dessas questões voltadas ao trabalho da continuidade em set, deve-se atentar também no caso do plano seguinte repetir o mesmo movimento do anterior ou de suprimir um movimento imediato (se a personagem faz o movimento para começar a abrir uma janela e no plano consecutivo já está completamente aberta). Segundo Reisz, o instante ideal de um corte dentro de um movimento é quando está no início ou no fim deste. Quando a personagem está sentada e vai tomar o copo d’água que está na mesa a sua frente, o melhor instante seria quando toca o copo. Assim, em um plano faria o movimento com o braço até pegar o copo e no plano seguinte, com a mão na mesma posição, ergueria o copo da mesa. Todas essas regras valem para aquele cinema que objetiva a Transparência dos aparatos, ou a imersão do espectador na narrativa. Há filmes que exploram justamente a quebra dessas regras, como explicamos na seção de Direção. Se tratando de um primeiro contato com a montagem, nesta etapa podemos trabalhar com dois tipos de corte, o ”seco” e a “fusão”. O corte seco é a mudança entre planos que acontece sem efeitos, em um frame temos um plano e no seguinte já temos o outro. O corte acontece num piscar de olhos. A fusão é quando a imagem de um plano vai “sumindo” e entrando aos poucos a imagem do próximo plano, também é possível que a imagem vá escurecendo até ficar uma tela preta e o plano seguinte entra “surgindo” do preto. A fusão, a princípio, só é aplicada quando queremos passar a ideia de que o tempo de um plano a outro passou, sejam horas ou décadas, e queremos enfatizar essa informação. O corte seco é aplicado de maneira geral, mas precisa de cuidados quando queremos que passem despercebidos, como no exemplo da estante de livros. 


    • Grau de modificação do tamanho a do ângulo da imagem: Em todo corte deve haver alguma motivação evidente. Da mesma forma que ficamos irritados quando alguém nos repete algo que já foi dito e que, nitidamente, já entendemos, os espectadores costumam se incomodar com redundâncias gratuitas. Walter Murch, explica que se a mudança de plano (ou o corte) é grande o suficiente, o espectador reavalia o que vê e entende que se trata de uma nova perspectiva, o que não acontece quando a mudança não é tão expressiva:


    O que nos parece difícil de aceitar são os deslocamentos que não são nem sutis nem gritantes: por exemplo, o corte de um plano de corpo inteiro para outro um pouco menor em que os atores estão enquadrados do tornozelo para cima. Neste caso, o novo plano é diferente o bastante para assinalar que  algo mudou, mas não o suficiente para nos fazer  reavaliar o seu contexto. O deslocamento da imagem não é contínuo, mas também não é uma mudança de contexto. A colisão dessas duas ideias produz uma confusão mental - um pulo - que, comparativamente, torna-se incômodo. (MURCH, 2004, p 19)


    A ideia aqui é que se a proposta for que o corte não seja percebido, para ele existir tem que valer a pena. Ou seja, se um plano é igual o anterior com uma diferença mínima no zoom ou na posição da câmera, é melhor não cortar. Como Murch explica o espectador percebe que alguma coisa mudou mas como é pouca diferença fica incomodado até entender. Outro ponto é que se a mensagem puder ser transmitida com menos cortes, melhor, pois fica uma mensagem mais fácil para ser digerida pelo público. Entendendo estes pontos, podemos então reforçar seus prejuízos. Se a proposta de cena for exatamente deixar o espectador confuso, com o propósito de que participe mais da proposta do filme, temos aqui algumas ferramentas. O público que vai assistir ou o meio também pode encorajar a quebra dessa observação. A internet revolucionou diversas linguagens e esse aspecto é uma das principais mudanças nos conteúdos audiovisuais hoje. Na internet, como o objetivo é a linguagem oral, a mensagem, o público aceita tranquilamente cortes que mantenham o plano e que subtraiam apenas os instantes em que não é dito nada, sobrando milésimos de segundo entre uma frase e outra. Mesmo esse exemplo, ainda conseguimos encaixá-lo nesse quesito do grau de modificação, nele a motivação do corte é a importância maior do que é dito sobre o que é visto, então o espectador aceita bem o corte, mesmo que a modificação da imagem seja mínima. Esse tipo de corte se chama Jump-cut e no cinema é difícil vê-lo com alguma frequência, muito pelo dispositivo. Os produtos da internet são vistos de maneira geral no celular e, mesmo no computador, é improvável que a pessoa esteja tão dedicada ao dispositivo quanto se propõe dentro de uma sala de cinema. Mas o campo da experimentação está aí para romper e propor outras formas de interação com o espectador, desde que provoquem uma experiência que o tire de uma zona passiva para participar, ativamente, da experiência do cinema.  


    • Preservação do sentido de direção e uma continuidade clara: 

    Como detalhado em direção, a etapa de filmagem tem este mesmo cuidado dentro do set. A filosofia é que se, num mesmo plano, a personagem ‘a’ está do lado direito e a ‘b’ está do esquerdo, devem obedecer o mesmo posicionamento nos outros planos que surgirem durante todo o diálogo. Da mesma forma com o cenário, se a personagem aparece do lado direito de uma árvore, é importante nos outros planos da cena que a árvore continue à esquerda na tela. Isso preserva o posicionamento dentro da cena para os espectadores, mesmo quando o plano não abranger todo o ambiente. Se um novo elemento ou pessoa surgir na cena, o ideal é que se mostre num plano aberto esse surgimento para que fique clara a nova informação. O mesmo vale para sons de elementos que estão fora da tela, a reação ou interação dos que estão dentro, deve obedecer o critério de continuidade. A referência para este item é o que a câmera vê, independentemente de como se dispõe no ambiente, o cenário e os atores se posicionam à esquerda ou à direita da imagem capturada. Quando uma personagem está na sala e diz que vai até o carro, na garagem, independentemente do caminho percorrido dentro da casa, toda vez que uma imagem deste caminho for capturada, deverá, necessariamente, caminhar para a mesma direção (esquerda ou direita). Se no meio do percurso, houver a necessidade de mudar de direção, deve-se registrar esse momento e manter a nova direção até que novamente necessite ser alterada, para que não haja confusão nos espectadores. Como no item anterior, talvez essa confusão seja uma boa ferramenta para o que o filme propõe, mas se for usada é importante que seja com consciência e clareza da proposta.


    • O Som: A pessoa que realiza a montagem deve considerar, principalmente em pequenas produções que acumulam funções, que os princípios de montagem se aplicam também à montagem do som. Aspectos descritos acima como continuidade, tonalidade e preservação de sentido espacial seguem tratados junto à imagem com o mesmo grau de preocupação. É interessante comparar as reações entre estadunidenses e soviéticos ao surgimento do cinema sonoro. No documentário Visions of light (Arnold Glassman, 1992), que conta a história do cinema sob a perspectiva dos realizadores de hollywood,  temos a informação de que para os estadunidenses, a aplicação do som no filme causou um retrocesso do amadurecimento da linguagem cinematográfica. Ao passo que temos de Pudovkin, Eisenstein e Alexandrov um manifesto que diz que o som deve ser aplicado como elemento contrapontual às imagens,  que colabora com a narrativa, de forma que seu uso inteligente, como em “M, O Vampiro de Düsseldorf” (1931) de Fritz Lang, abre infinitas novas possibilidades de imersão na experiência do cinema. Hoje, desde o roteiro, já são pensados o som e os momentos de silêncio fundamentais para narrativa. A montagem é outra etapa privilegiada para a criação da sonoridade do filme, e na maior parte dos casos o último momento no qual o som pode adquirir um papel fundamental na narrativa. Se nessa etapa não forem previstos momentos de “silêncio”, sem diálogos ou música (abrindo espaço para os sons ambiente e ruídos), e momentos de “contraponto” entre sons e imagens, dificilmente haverá oportunidade para isso ocorrer na etapa posterior da edição de som. 



    • Menos é mais: Em meu primeiro curso relacionado ao audiovisual, havia um professor que sempre quando avaliava meus trabalhos dizia que era possível cortar muita coisa. A cada nova consulta, insistia que ainda daria para cortar. Saía de cada encontro indignado, pensando ser impossível tirar  qualquer coisa. Tudo era essencial. No fim, horas de material bruto se transformaram em apenas quinze minutos de filme, mais do que suficientes para o que pretendíamos. Quem monta, passa tanto tempo em contato com o filme, que sua atenção passa a relevar e desconsiderar certas questões que são essenciais para um filme coerente. A principal delas é que menos é mais.  A diferença entre a experiência que o cinema propõe e um telejornal, é que a primeira busca um espectador atento e que interaja com os estímulos a ponto de que se torne indivíduo ativo da experiência. 


    “[...] a sugestão é sempre mais eficiente que a exposição. Passado um certo ponto, quanto mais você se esforça para enriquecer os detalhes, mais encoraja o público a ser espectador em vez de participante.” (MURCH, 2004, p.26)


    Esta filosofia serve tanto para questões mais sutis como as intenções de determinada personagem, que não necessitam ser verbalizadas sempre, quanto mais simples como o caminho que uma personagem percorre de um lugar a outro sem que nada de relevante aconteça. O próprio espectador não espera do filme que as ações aconteçam como fora das telas. Não é interessante que se uma personagem precise subir dois lances de escada, 10 andares de elevador ou até mesmo ir de transporte ao trabalho, vejamos todo esse percurso em um tempo ‘real’. A pessoa responsável pela montagem controla o ritmo dos planos de acordo com princípios como os tipos de montagem de Eisenstein e os cuidados de Reisz.

    Como em 90% do tempo estamos incertos sobre o que seria o corte ideal, Murch propõe uma lista de prioridades a serem consideradas em nome do “bom corte”. Até aqui já passamos por todas as ‘regras’ para conseguir um material coerente, mas como já foi mencionado, a montagem é um processo artístico que se permite quebrar regras. Portanto, o que Murch apresenta é uma forma organizada de se fazê-lo.  Baseada no que o público sente (que é o objetivo do filme), a lista funciona indicando qual regra quebrar primeiro em nome do corte ideal.



    1. Emoção

    O corte traduz a emoção que o roteiro propõe.

    1. Enredo

    Desenvolve a história/roteiro

    1. Ritmo

    Acontece no momento certo

    1. Alvo de imagem

    Correspondência de ações consecutivas

    1. Plano bidimensional da Tela

    Regras de eixo da fotografia

    1. Espaço Tridimensional da Ação

    Preservação do sentido de direção e grau de modificação do espaço.


    Na insatisfação de um corte que, teoricamente, esteja correto mas que ainda ‘não convença’ podemos ir quebrando as regras do fim ao começo. O que Murch sugere é:

    [...] uma escala de prioridade. Se tiver que abrir mão de alguma coisa, nunca abra mão da emoção em benefício do enredo. Não abra mão do enredo em benefício do ritmo, não abra mão do ritmo em benefício do alvo de imagem , não abra mão do alvo de imagem em benefício dos planos e não abra mão da dimensão dos planos em benefício da continuidade. (MURCH, 2004, p 31).



    Apesar de já enfatizado em cada exemplo, vale lembrar que até aqui a montagem  trabalhou de maneira prática, considerando aspectos técnicos, qual a melhor maneira de narrar. A partir deste ponto, quem monta vai para outra esfera, a arte da montagem. Considerando a teoria que já tratamos, o que esperamos do espectador são sentimentos e sensações que se comuniquem com o filme para além do aspecto técnico. Numa cena onde a personagem caminha pela rua, o espectador não está pensando que lugar da cidade é ou quantas pessoas estavam atrás das câmeras naquele momento. O espectador está a procura de como a personagem se sente, o que está pensando ou o que pretende e formando os seus próprios pensamentos e sentimentos. O desafio de quem faz o filme é conseguir que o espectador consiga expressar os sentimentos que o filme propõe,  consciente de que aquilo não é real. E é ainda mais interessante, quando o espectador responde aos estímulos do filme como se estivessem acontecendo com ele. É isso que gera reflexão, e faz a mensagem permanecer, processando e gerando conclusões mesmo depois do fim do filme. Como a montagem intelectual resume, o filme não é apenas um tipo de montagem ou um gênero estritamente preciso, mas uma dança, uma música com altos e baixos, intensidades diferentes dentro de si mesmo e conhecer a linguagem clássica pode oferecer ferramentas que guiem o espectador a uma experiência que gere diferentes sensações quebrando estruturas q o cinema ou o próprio filme constrói.



  • O que é montagem?

  • A construção da montagem

  • A Narrativa Clássica